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Enterrar os mortos e cuidar dos vivos


Chego a Évora quando todos os outros partiram. Ninguém está cá, propriamente, para me receber. No entanto venho, simplesmente porque há contingências que me obrigam a vir.
Évora está cá, no mesmo sítio. Os mesmos contornos que se aproximam, que se revelam, que se descobrem à medida que os quilómetros encurtam a distância entre o Eu e o Tu, cada vez menos longínquo. Silhueta amuralhada formada por campanários, torres e arcos aquíferos que identificam esta ilha no meio de desertos de montados e colinas.
Passear aqui é uma surpresa constante. Contudo, coloca-se uma questão que vai muitíssimo para além daquilo que poderia ser uma jornada turística ou meramente veraneante. E se Évora fosse Áquila?
Muitas vezes surge-se me esta questão, emerge este terrível panorama, este diabólico medo que poderá, um dia, não ser mais do que mera realidade.
Impossível esquecer, neste momento, as imagens que nos surgem constantemente, no seio de um mundo onde a informação chega à velocidade da luz. E perante imagens globais, sentimentos globais.
É desolador ver aqueles rostos devastados, aqueles corpos sem rumo, se destino, sem nada. Casas com tectos de céu. Paredes onde as portas já não são precisas, porque já nem paredes são. Amontoados de coisa nenhuma onde outrora estavam as ruas, os arcos, os campanários…
Junto do nada, reúne-se a desilusão de quem tudo perdeu, a dor de quem perdeu alguém, o corpo de quem não conseguiu fugir a tempo. Áquila parece ter sido vítima de um bombardeamento em contexto bélico. Contudo, a guerra que ali se travou teve a Natureza como principal inimigo, munida de armas ferozes, invencíveis, mortíferas na sua plenitude. Cobardemente atacou de noite, levando no leito da morte grande número dos seus habitantes, das suas vítimas. Os sobreviventes, esses, espalham-se pelos campos de refugiados, amontoando o desespero, a falta de coragem, o medo e a angústia.
E se Évora fosse Áquila? Nas nossas atarefadas caminhadas, por acaso parámos para pensar nisto? E se os destinos desnorteados fossem os nossos? Os rostos pesarosos, os nossos? Aquela desgraça, a nossa?
Foi lá, simplesmente porque não foi aqui. Mas se tivesse sido aqui? Seriamos capazes de imaginar uma Évora feita de escombros, de esquinas, torres e arcos desfigurados, das pedras da História sem mais histórias para contar? É difícil, mas é possível.
As tendas azuis podiam ser as nossas futuras casas, aqueles rostos empoeirados o meu, o teu, os nossos. Felizmente, para nós, foi lá, e não foi cá. Torna-se horrível dizê-lo, porque soa a indiferença. Mas ao mesmo tempo é bom poder dizê-lo porque significa que pudemos, nos últimos 5 minutos ler descansadamente, em nossas casas, no conforto dos nossos sofás ou das nossas camas, com os candeeiros ligados ou com o sol a jorrar pela janela, um simples texto dum jornal globalmente divulgado que se debruçava sobre uma desgraça que aconteceu a uns pobrezinhos italianos – coitadinhos! A nossa vida continuará igual, rotineira, quotidianamente normal, independentemente de tudo. Contudo, e se Évora fosse Áquila?


Carlos Carvalho

Comment (1)

Se Évora fosse L'Aquila, hoje muito pouco ou nada de Évora restava, a não ser como muito bem dizes Carlos, os rostos desolados de alguem que tudo perdeu, em muitos casos até a alma....
Neste momento a minha questão é outra, e se Viterbo fosse L'Áquila, a distância não é muita, foram apenas 100km, o suficiente para me fazer acordar as 6.30 da manha com a minha cama a abanar, quem diz a minha diz de muitos dos habitantes de Viterbo. E Eu hoje penso ainda bem que não foi 100km mais ao lado....

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